22 abril 2006

Tour à moi même

Conhecermo-nos é compreender quem somos e porque razões somos assim.
Penso-me bastante (hoje e sempre) questiono-me ainda mais, procuro ser razoável, justa e coerente, o que ao longo da minha vida não me tem sido fácil, porque viver é como voar. Voa-se alto, voa-se baixo, voa-se para existir e voa-se para se ser melhor!
Como é que tenho voado?
Quando nasci, contava a minha mãe, que eu era doente. Não me lembro. Não posso lembrar-me de me baptizarem à pressa, no berço, porque 'amanhã' podia já ser tarde. Lembro-me claramente dos meus quatro anos, das vindas do médico e das enfermeiras a casa, lembro-me da minha irmã ser solidária comigo e dizer que ia furar os pneus do carro, para eles não voltarem lá a casa. Tenho saudades dessa cumplicidade.
Lembro-me da minha escolinha, sempre muito limpa, e do cestinho do lanche onde a minha mãe me mandava cerejas muito grandes e vermelhas. Lembro-me da minha irmã trocar o lanche dela, pelo pão com banha que davam na escola. Lembro-me de irmos ao circo, que era enorme e tinha elefantes, tigres e leões. Lembro-me da Nani e dos dois irmãos, o Helder e o Carlos. Eram nossos vizinhos no Porto. Lembro-me de chegar a carrinha do pão, e os 'moletes' (assim chamavam ao pão) serem tão bonitos. Ainda hoje vejo no Porto, pão com aquele formato. Lembro-me de irmos à praia e brincarmos muito! As nossas mães, paravam sempre num parque infantil e deixavam-nos brincar nos escorregas, nas pranchas, no comboio. Lembro-me que a minha mãe era bonita. Lembro-me de uns vestidos que eu e a minha irmã tínhamos (havia uma fotografia em que estávamos as duas sentadas no pátio com eles vestidos) e de umas chinelas cheias de missangas. Lembro-me de irmos ao Porto, sempre pela mão da minha mãe, andarmos de eléctrico e esperarmos em Matosinhos que a ponte abrisse ou fechasse. Saudades mãe.
Lembro-me de virmos para a Barra, para casa da avó Adelina, nas férias grandes. Lembro-me de como ela era meticulosa. Como ela tinha a casa sempre tão limpa, do cheiro a limpo e lavado naquelas camas, da despensa que tinha sempre a porta fechada porque era lá que estavam as guloseimas! Só ela é que nos dava e nós (eu e a minha irmã) não ousávamos abrir aquela porta. Mas dáva-nos sempre e do melhor. Lembro-me de irmos à loja do Sr. Mourinho comprar as coisas com ela. Lembro-me dos tanques onde se lavava a roupa e do camião da água que vinha de Ílhavo abastecer as casas.
Também íamos para Salreu, para casa da avó Margarida. Aí era a liberdade total. Andava sempre descalça e as ruas eram de paralelo muito incerto. Andava sempre com o dedo grande do pé, em ferida. Ia à loja do'Saramago' comprar manteiga. Lembro-me de vir pelo caminho a meter o dedo na manteiga e a comer. A minha avó reclamava sempre, dizendo que o 'Saramago' cada vez punha menos manteiga no papel vegetal e levava o mesmo dinheiro. Lembro-me de dormir na mesma cama que a minha avó e a minha irmã. Lembro-me que elas dormiam e eu não, com medo de fechar os olhos e as centopeias, que às vezes andavam pela parede, viessem para cima de nós. Lembro-me de brincar às peixeiras. Andava sempre com a canastra à cabeça a vender peixe, que eram diferentes folhas de árvores. Eu queria ser peixeira quando fosse 'grande'. Lembro-me de ouvir o homem da sineta andar pelas ruas a tocar quando morria alguém. Lembro-me de ir à fonte buscar água boa para beber e ir para o rio e brincar com a minha irmã. Lembro-me das vindimas e das desfolhadas. Era uma alegria.
Fui crescendo. Na transição do Porto para a Gafanha vivemos em Salreu. Lembro-me de muitos episódeos. Os que me ficaram: a morte do Bobi, o nosso Bobi. O que eu chorei. Sepultámo-lo por baixo de uma laranjeira. E lembro-me da presença da minha avó Adelina lá em casa. Sempre a pedir-me que pusesse os sapatos direitos, a par um do outro porque assim é que estavam arrumados e sempre a dizer-me: 'Paulinha, vai ali filha e estica o pano da louça porque não está direito. Paulinha põe aquele casaco direito, puxa a ponta daquela toalha que não está direita. 'E eu só dizia: 'Ó avó porque é que tu não pedes isso à minha irmã? És tão chata!'
Minha querida avó, como te agradeço o que fizeste por mim. Nem sabes como me ensinaste a ser limpa e arrumada. Que pena não estares hoje aqui para veres que sou como tu gostarias que eu fosse. Foi obra tua avó, tenho a certeza.
Viémos viver para a Gafanha. Não gostámos nada. Eu e a minha irmã deixámos os nossos amigos de Leça e de Salreu. Mas o meu pai deixou os navios de pesca no Porto e começou a fazer viagens ao bacalhau com ponto de partida e chegada na Gafanha. Esse tempo foi muito... O que me marcou? Os Verões em que estava sempre de cama doente e a minha irmã a ir para a praia com as amigas. As visitas do padre Domingos. Eu detestava. Uma vez estava tão doente que pensei que tivesse vindo dar-me os últimos sacramentos. Que horror. Disse à minha mãe e ele nunca mais lá foi. Limitava-se a perguntar como é que eu estava.
As minhas brincadeiras com o meu primo Zé Luis. Brincávamos às casinhas. Adorava brincar com as bonecas. Esquecia-me do tempo. Bonecas que não tinha e que inventava. Claro que me lembro imediatamente (porque será?) das bonecas que o meu pai trazia do Canadá à minha irmã. Comigo gastava-se muito dinheiro em medicamentos. Eu sei mãe que não foi por mal. Eu sei que se pudesses não tinhas dito isso, porque sabias que se alguém não gostava de estar doente era eu. Sabias também que se alguém brincava com bonecas era eu.
Lembro-me de um Natal em que eu e a minha irmã só recebemos uma caixa pequena com chocolates. E lembro-me que o meu pai não falava e a minha mãe estava triste. Vivia-se um momento financeiro muito difícil. O meu pai estava desempregado e o meu irmão tinha nascido.
Lembro-me que o meu pai deixou de fumar porque não havia dinheiro para tudo e 'o leite e o pão não podia faltar às meninas'. Lembro-me tão bem da mesa da cozinha e do prato da sopa! Ainda hoje não gosto da sopa de favas por tanto a ter comido.
Mudámos de casa várias vezes na Gafanha. Estudei em Ílhavo durante o 1º e o 2º ano do então Ciclo Preparatório. Lembro-me que tinha nove anos e ia sozinha na camioneta para Ílhavo. Lembro-me que com 9 anos tinha já feito o exame de admissão ao Ciclo Preparatório com três professores a inquirir-me num liceu enorme e intimidante!
E não tenho propriamente grandes recordações desse tempo porque tive professores autoritários e arrogantes. Ficaram-me para sempre aquelas reguadas violentas com o compasso do quadro que a prof. Glória de E.V. me deu por não ter ouvido o toque e não ter chegado no mesmo momento que ela à sala. Ficaram-me as preferências dela por alguns e algumas colegas da sala que eram sempre protegidos e por vezes injustamente desculpados.

1 Comments:

Blogger Henrique said...

É realmente um post muito bonito, muito mesmo!
Gostava eu de poder retratar as minhas equivalentes memórias de uma forma tão bonita.

8:27 da tarde  

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